Por que o funk paulista deu apoio inédito ao PT e como o estilo pode se aliar a políticas culturais

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Os maiores empresários e MCs famosos de SP se posicionaram pela 1ª vez em 2022. Estilo que cresceu à margem do poder público pode se integrar a políticas para o país, dizem especialistas. Acima da esquerda: Lula com Rodrigo GR6 e com MC Magal. Abaixo: Lula com MC Marks e com Kondzilla e Janja
Divulgação
O apoio de sertanejos a Bolsonaro e de astros do pop e da MPB a Lula fez barulho nessa eleição. Mas o PT conseguiu, dias antes do primeiro turno, aliados inéditos em um estilo super popular e que relutava em se posicionar: o funk de São Paulo.
Lula fez encontros e tirou fotos com os maiores empresários do setor, Rodrigo GR6 e Kondzilla, e ganhou apoio desde Neguinho do Kaxeta, veterano do funk consciente, até Ryan SP, jovem fenômeno com versos de muito sucesso que passam longe da política.
Conheça os bastidores deste apoio e saiba o que pode mudar, agora com Lula eleito, na relação entre o futuro governo e um estilo que cresceu à margem do poder público:
O apoio aconteceu por iniciativa do PT. Desde o início do período eleitoral a coordenação da campanha de Lula tentava fazer a ponte com as principais empresas.
Como o funk é alvo de preconceito e de tentativa de criminalização, houve receio no setor de se expor politicamente e sofrer represálias de adversários. Mas eles decidiram se posicionar.
O apoio era importante para o PT. O partido perdeu votos nas periferias em 2018. Em 2022, em especial na cidade de SP, houve uma virada expressiva e fundamental na vitória de Lula.
Com a perspectiva de uma interlocução inédita, o dono da GR6, maior produtora do setor, diz que o funk pode deixar de ser “invisível” na política e cita projetos para fomentar novos talentos pelo país.
Especialistas em políticas culturais citam benefícios para a indústria cultural e as comunidades. E lembram da política do ex-ministro Gilberto Gil no governo Lula como uma referência a ser resgatada.
O contexto: a bronca de Mano Brown
Rapper Mano Brown faz discurso crítico ao PT durante comício do candidato à presidência Fernando Haddad
Ricardo Moraes/Reuters
No dia 23 de outubro de 2018, em um comício do então candidato à presidência pelo PT, Fernando Haddad, o líder dos Racionais MC’s, Mano Brown, causou um climão histórico e criticou o partido em cima do palco.
“Tem uma multidão que precisa ser conquistada ou vamos cair no precipício. (…) Deixou de entender o povão já era. (…) tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender”, disse o rapper na campanha passada.
“Mano Brown é um grande influenciador. Com certeza o PT escutou ele”, diz ao g1 Rodrigo Oliveira, dono da GR6. Os petistas têm relação com o rap de SP desde os anos 90. Mas hoje é o funk o estilo mais consumido pelo “povão” da cidade. “Esse foi o primeiro ano em que o PT procurou a gente”, diz Rodrigo.
“O concorrente (Bolsonaro) não procurou. Se tivesse procurado, a gente ia atender”, Rodrigo afirma. “Então a gente abriu as portas para o PT e entendeu a ideia deles. Espero que as pessoas olhem mais para o funk, para as comunidades e as periferias.”
O recado de grandes MCs
O MC Neguinho do Kaxeta, que tem mais de 20 anos de carreira e conheceu o funk de SP na pobreza e na riqueza, resumiu em um post em outubro: “O funk e eu não precisamos de políticos. Mas meu povo, que consome o funk, precisa de um bom governante, e o Lula conversa com a periferia”.
Também apoiaram Lula jovens ídolos do funk paulista como os MCs Dricka, Magal, Marks, Salvador da Rima e o influente Hariel, que defendeu o voto “para executar o plano de tirar o Bolsonaro do poder.”
A maior surpresa foi o funkeiro mais ouvido no Brasil atualmente, dono de músicas sobre festa, e que admite “não se envolver com questões políticas”. MC Ryan SP disse: “Se eu puder influenciar alguns milhões de votos a favor do Lula, minha família e a de milhões de pobres vão ter uma vida melhor”.
‘O pai tá estourado’
Não foi só em São Paulo que Lula tentou se reconectar com as periferias das grandes cidades. O comício dele no Complexo do Alemão, no Rio, mediado pelo líder comunitário Renê Silva, foi um dos atos mais marcantes da campanha de 2022.
A estética do PT se apropriou de símbolos das favelas, muitos criados no funk de São Paulo. Lula colocou óculos da marca Juliet, queridinha dos MCs, e usou slogans como “o pai tá estourado” – gíria do próprio Rodrigo GR6 e de Deolane Bezerra, viúva do MC Kevin, apoiadora de primeira hora de Lula.
Peça de campanha de Lula para redes sociais incorporou a estética do funk de SP
Reprodução
Rodrigo diz que, na conversa com Lula no final de setembro, disse que não bastava usar os óculos sem vestir a camisa:
“Falei para eles que o funk não se resumia a uma Juliet. Esses moleques são grandes influenciadores. A palavra do Hariel numa comunidade pode ajudar muito. O funk é orgânico, verdadeiro, ajuda em segurança, educação, empregos. Só a GR6 gera quatro mil empregos, sem contar as casas de shows.”
“A gente vê os sertanejos se posicionando com Bolsonaro, e sabe que eles tiveram benfeitorias. O funk nunca tocou nessas festas de agropecuária, de prefeitura. Acredito que é porque a gente nunca furou essa bolha para verem que a gente existe. As pessoas tentam ocultar o funk”, ele compara.
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Especialistas analisam ‘feat’
Se o funk de SP já chegou ao topo sozinho, pode haver alguma mudança com um poder federal em contato com o estilo? O que esperar dessa parceria – ou “feat”, na linguagem da música pop? A lembrança dos dois primeiros governos de Lula, entre 2003 e 2010, pode indicar o futuro.
“O ciclo comandado por Gilberto Gil e Juca Ferreira (ministros da Cultura de Lula) tentou estabelecer a oferta de condições estruturais nas periferias como um desenho de política pública”, lembra Miguel Jost, pesquisador de políticas públicas de cultura.
“Esse é um debate que está acontecendo: sobre a relevância dos territórios periféricos na cadeia da cultura. Ele precisa novamente ser feito para que a gente possa gerar um ciclo de prosperidade – e mais do que isso, de inovação, originalidade, e valorização das expressões culturais”, diz Miguel.
“Você tem um ganho em toda a região, não só no sentido econômico, mas de melhora na qualidade de vida, na produção de relações mais fortes de pertencimento social e fortalecimento das bases comunitárias”, ele conclui.
“Só pelos dados de consumo do funk já dá para imaginar o que gera na economia. Independentemente de se gostar de funk ou não, é uma manifestação pop, eletrônica e original do Brasil, e que tem um grande apelo internacional”, diz Dani Ribas, especialista em gestão e políticas culturais.
Dani Ribas também cita a gestão de Gilberto Gil como referência. “O Brasil exportou essa política com enorme êxito pela América Latina, o que eles chamam de cultura comunitária”, ela descreve. “Certamente a cultura é um dos eixos da transformação em um país menos desigual.”
“Há todo o mercado artístico, das produtoras, da distribuição, uma série de indústrias atreladas ao funk, muitos empregos. É uma comunidade ativa que elabora seus próprios sentidos”, ela afirma.
Ela conclui apontando o funk como fonte potencial de “soft power” (poder brando), termo que aponta a influência que um país exerce através do seus produtos culturais, como o cinema dos EUA.
“Não tenho dúvida de que o funk no exterior, na Europa, tem grande apelo. Gera fluxos de economia e também de ‘soft power’”, diz Dani Ribas.
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Fonte: G1 Entretenimento